Quando uma mania vira
verdadeiramente um vício?
Quando essa mania passa a
prejudicar outras áreas da vida. Essa foi a melhor definição que já vi. Quando o
hábito extrapola seu limite natural, é porque não se tem mais controle sobre
ele, e ele vai tocar sua saúde, seu rendimento profissional, sua vida social e
familiar e o pior: seu caráter.
Veja como a bulimia se alastrou por
cada esfera da minha vida.
SAÚDE: virando zumbi
Vi uma conhecida ir internada
após um ano dessa prática. Noto que o anseio desenfreado pelo emagrecimento é
muito mais perigoso do que o anseio pela comida. No primeiro caso, cada pequena
quantidade de comida é expelida, então o ácido passa muito concentrado pela
garganta, machucando-a, e a deficiência nutricional é muito maior. No meu caso
é diferente: o ácido vem tão diluído em comida, que nunca me machucou, mas
mesmo eu não apresentando deficiência calórica, e tentando compensar o
desfalque nutricional comendo de forma saudável depois, sei que não é o
suficiente. Posso pagar caro no futuro, pois a carência nutricional é
cumulativa ao longo da vida, e a fraqueza, tremores no corpo e dores no
coração devem estar ligados à falta de nutrientes. As pintinhas de sangue ao
redor dos olhos acusam a pressão que o rosto sofre, e os dentes vão perdendo o
esmalte que nunca voltará a ser o mesmo. A erosão ácida nos dentes também pode
ser provocada por refrigerante, frutas e vinagre. Nunca se deve escovar os
dentes logo após acidificar a boca. Deve-se apenas enxaguar, e esperar 15
minutos para escovar (meu pai dentista vive batendo nessa tecla).
RENDIMENTO: dormindo no vaso
Já aconteceu de eu pegar carona
para o campus universitário com a minha mãe, chegar lá, e simplesmente dar meia
volta e pegar um ônibus para uma lancheria durante uma aula importante. O que
dirá chegar atrasada... Isso virou regra. No meu estágio, eu chegava quase
todos os dias direto de uma crise bulímica, que causa um sono incontrolável. Eu
ia para o banheiro e dormia sentada no vaso.
AMIGOS E FAMÍLIA: perdendo-os
Uma vez, minha irmã me apresentou
a um amigo inconveniente que me cumprimentou assim: “Oi, prazer. O que você
tanto faz LÁ EM CIMA??”. Eu falei que não entendi, então ele explicou: “É que a
tua irmã disse que VOCÊ NUNCA FICA JUNTO COM A FAMÍLIA. Você está sempre
fazendo alguma coisa... lá em cima”. Eu realmente era muito ausente, pois
estava ocupada me destruindo. Quando ela descobriu meu problema, disse que por
um lado era bom saber que eu não era ISOLADA por querer.
Ninguém pode se julgar uma pessoa
“menos ruim” porque não faz nada de mal para os outros. NADA QUE VOCÊ FAZ
CONTRA VOCÊ MESMO, CAI APENAS SOBRE VOCÊ. AS CONSEQUENCIAS TOCAM AQUELES QUE
ESTÃO AO SEU REDOR. Minha mãe pode ter me ajudado, mas duas psicólogas acharam
que ela precisava mais de terapia do que eu, pois ela se encontrava muito
abatida, explosiva e sem saber como lidar.
Na aula, eu freqüentemente
chegava com o raciocínio lento, com dificuldade de conversar, com medo de
sentirem algum cheiro em mim, e mal arrumada por falta de tempo (tempo que a
bulimia roubava). Então, novamente, eu me fechava. Porém, quando a marcação em
casa apertou, passei a comer na rua mesmo. Eu mamava leite condensado na frente
das vizinhas, comia ininterruptamente barras de chocolate durante toda a ida de
ônibus até a faculdade, no meio de todos os outros universitários, e vomitava
nos banheiros do prédio, mesmo que o lavatório fosse externo ao boxe sanitário!
Independente de alguém ter me observado ou não, eu já me colocava no papel de “UMA
LOUCA QUE NÃO VAI CONSEGUIR AMIGOS POR AQUI”.
CARÁTER: momentos de ladra
Eu acredito no respeito que um
ser humano deve ao outro, nos mínimos detalhes. Mas o vício pode desfigurar o
caráter de alguém. Quando se trata de comida, EU SEMPRE MINTO: não fui eu que
comi. Não fui eu que gastei. Não estou com fome.
Teve um momento em que eu pedi
para meus pais TRANCAREM A COMIDA na despensa. Meu pedido era genuíno. Mas aquele CADEADO nunca pôde comigo. Eu descobria a senha, seja por tentativa e erro ou por
dedução. Na falta dos dois, eu dava um jeito de retirar o cadeado fechado mesmo,
e devolver como se nada tivesse acontecido. Às vezes, eu tinha um momento de
lucidez e denunciava a mim mesma, para que eles reforçassem a segurança. Outras
vezes, não.
Outro pedido que fiz foi que eles
controlassem meu DINHEIRO por um tempo. Esse pedido também foi legítimo, mas antes
eu nunca tivesse aberto a boca. COMECEI A ROUBAR. Mercados grandes ou pequenos,
não importava, as câmeras sempre têm um ponto cego. Eu gostava de pensar que,
alguma dignidade eu ainda devia ter, então eu roubaria os produtos mais baratos
possíveis, como as rapaduras. Doce enganação. Eu acabava não resistindo aos
chocolates. Que ridículo seria alguém pegar uma moça nada pobre larapiando bolachinhas
no mercado. Simplesmente patético.